Feita de areia, de Marcelo Leandro Ribeiro



Uma moeda, duas malas e a esperança. Tudo o que tinha cabia em seus ombros, encaixados entre os ossos delicados das suas costas. As malas, meio cheias ou metade vazias, imbuíam-se de ser conteúdo uma da outra e se faziam apenas um receptáculo velho a levar andrajos e dois calçados que sequer combinavam. As ruas em nada lembravam os caminhos do local onde tinha nascido.
As vielas do bairro em que morava até pouco tinham um que de metamorfose congénita pois a cada dia amanheciam diferentes, fosse por um tiro na porta do vizinho ou a fachada de um comércio destruído por uma bomba.
Teve que se passar por homem para conseguir fugir. Mulheres ali eram vitais, fosse como escudos humanos, pedintes ou simplesmente aparato sexual.
Vestida de homem, o coração de menina e o corpo explodindo nas formas de uma mulher magnifica, cruzou o deserto sozinha. Tinha vendido algumas pedras e jóias que o avô lhe deixara, matou algumas cabras para ajudar a fazer um dinheiro e como complemento entregou o corpo seis ou sete vezes entre soldados que passavam pela sua vila. Tinha nojo deles como quem tem asco pela escória do mundo, mas optou pela impureza para buscar o fim da agrura que lhe era tormento desde que tomara consciência da sua condição de miséria.
Não era apenas a falta de dinheiro, mas sentia que nem a alma lhe queria viva. Não lhe parecia ter valor e o medo de desmanchar-se em areia, virando parte da miséria e da seca que a cercava, isso a afligia a ponto de fazê-la enojar-se e suportar outros corpos sobre o seu e dias a fio andando sozinha, deixando na forma de suor e sangue dos seus calos um pouco mais do seu corpo pelo trajeto que não conseguiria repetir nem nos seus pesadelos.
Todo o dinheiro que conseguiu virou uma massaroca de notas ensebadas pela areia e pelo suor, quase chegando a desmanchar-se em contato com seu corpo, pois ela o prendera por ataduras nos braços e pernas.
O normal para uma mulher em fuga seria deixar o dinheiro próximo às suas partes íntimas, mas sabia que se o fizesse correria mais ainda o risco de perdê-lo, pois se atacada no longo caminho entre o deserto palestino e a cidade do Cairo no Egito, era certo que lhe rasgassem as vestes e a roubassem além do abuso.
Não era com o corpo que se preocupava, o que estava decidida a mover além da areia era a chama que a mantinha viva, fosse alma ou o que quer que seja, aquele sopro que ainda impulsionava sua existência ferida.
Se lembra ainda de como conseguiu chegar na primeira grande cidade, em ter desmaiado e acordado numa tenda de ajuda humanitária, em ser tratada por um médico brasileiro e em ser roubada, pois não encontrou as ataduras que protegiam as cédulas presas em seus braços. Por sorte acordou antes que lhe roubassem também o dinheiro preso à barriga e às pernas. Viu-se sorrindo olhando para um espelho. Fazia tanto que não observava o próprio corpo nu e agora estava vendo algo totalmente diferente daquilo com que se acostumara. As coxas minguaram, feridas vivas tomavam conta dos seus pés e tornozelos, as ataduras com que protegera o dinheiro e algumas jóias rasgaram sua pele edemaciando canelas, a barriga e os braços, formando lacerações e postas de pus do tamanho daquelas rosas do Cairo que agora lhe eram alento. Só os seios ainda traziam um pouco da antiga beleza, lembrando que aquele corpo lhe era abrigo e como tal deveria reproduzir não seus sofrimentos, mas os sonhos de sempre, e que se até agora fora delírio, seria por ele que veria o amanhecer da esperança.
Escolheu São Paulo ainda na tenda.
Pouco importava para onde iria quando saíra de Gaza, queria apenas ter uma vida além da faixa, da miséria e a da agonia que lhe fora reservada, de ser escrava em sua própria morada.
Escolheu São Paulo não no deserto, nem no trajeto entre a fronteira e o Cairo. Talvez tenha sido a simpatia do médico que a atendera, os comentários da colónia árabe na capital paulista. Se fosse homem seria atraída pelo futebol e a copa do mundo, mas disso ela nada sabia. Iria para onde lhe fossem primeiro os pensamentos e assim, depois de alguns dias, documentos, roupas doadas, unguentos nos ferimentos, que embarcou para o Brasil.
Em São Paulo só o sonho. Em São Paulo o olhar sobre o concreto, o cheiro de ar queimando-se no asfalto retinto da grande cidade, os carros velozes, o povo que passa e nem lhe observa, a calma e o mistério de saber-se diversa de toda essa vida e não ser vista como algo distinto. Em São Paulo ao mesmo tempo a doce esperança e o medo de sempre. Aquele desejo de viver além de tudo, para si, além de todos os sonhos que a mantém em pé.
Trazia em seu coração o recomeço, via a nova cidade como sua nova morada, mesmo que não soubesse ainda o que fazer ou aonde ir. Andava com seu sorriso no rosto e esperança e solidariedade só possível aos que nada tem, àqueles que não precisam se preocupar em ser nada além do que ninguém ao misturar-se à cidade de pedra e sonhos. Caminhando, na primeira esquina um mendigo, mais miserável que a própria miséria. Invisível para a grande cidade, mas não para quem traz ao peito o doce desejo de fazer do acalento o seu viver. Abriu a mão e entregou num aceno a pequena moeda, seu único dinheiro. E se alimentou do sorriso que recebeu do mendigo.
Agora eram apenas duas malas, a esperança e seu corpo franzino caminhando feliz em direção ao sol do ocidente. 



Marcelo Leandro Ribeiro

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