É como se precisasse beber toda a chuva,
para acender a claridade dos ombros.
Apagar estrelas com os pés descalços, para
acordar o fogo adormecido.
Os sonhos enchem os espaços vazios, entre
as nuvens das palavras. Morre um, chora a nuvem.
Na extremidade do que morre nasce outro e a dispersa.
Preciso do que morre, para regar o que nasce.
Por mais que me vista de metade, não é mais que
um disfarce a cobrir um corpo inteiro.
Como podia eu ser a metade de outro, se eu própria
já sou duas? Que metade lhe daria?
Sou saudade, do que já foi: memória que arrasto até
à outra metade, que descobre o que ainda será.
Sou azul. Um azul de outro azul, a luzir em cada
metade. E talvez cada metade, se divida em mais duas.
Amar é um peregrino a caminhar no deserto.
Uma chegada ao paraíso de um oásis, onde nunca
sabemos ficar. Uma exigência constante, de ter
apenas uma metade do outro a morar cá dentro, por
nunca o sabermos aceitar por inteiro.
Sónia M
3 comments:
muito lindo !! adorei !!!
vou compartilhar no meu perfil do Facebook, com os crédito, claro !!
parabéns !!!
Muito grata pelas partilhas!
Abraços
Sem fugir aos seus temas preferidos, Sonia M aventurou-se, pela primeira vez, a fazer uma abordagem filosófica na sua poesia, aqui explicitada na desmultiplicação do Eu sentimental pelas suas sucessivas metades, que é uma forma de dar consistência ao Todo ou ao Uno, tal como que se vê nestes dois versos: “Por mais que me vista de metade, não é mais que / um disfarce a cobrir um corpo inteiro”. Quem genialmente caracterizou esta desmultiplicação referida, foi o poeta Eufrázio Filipe, num sintético comentário que fez a este poema, e que se transcreve: “Tudo acontece no ciclo das marés / nos apeadeiros do cais / nos heterónimos”.
Trata-se, ao nível da renovação temática e estilística, de uma mudança significativa, desejada e promissora.
Aqui, a densidade poética é a primeira característica que salta aos olhos do leitor, e que é logo anunciada na entrada fulgurante dos primeiros quatro versos.
Alexandre de Castro
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