Estas saudades de mim, de Maria Laranja



Qualquer dia acabo com isto das saudades, ficam lá bem guardadinhas no sótão, dentro daquela caixa de cartão que nunca ninguém abre, que é para ver se fica mais fácil viver estes dias que gelam a palma das mãos, a ponta dos dedos e parte do coração. Qualquer dia acabo com isto das saudades, ponho-as a fazer ruas onde as pessoas vão passar e sentir uma coisa estranha, mas não vão saber o que é porque calçadas de emoções só existem na minha cabeça. Qualquer dia acabo com isto das saudades e transformo-as em água a correr para longe, rio de angústias que vá morrer noutra foz. Quando esse dia chegar vai ser bom porque passa a ser possível lembrar, verbo que faz aparecer logo pronto e rápido aquele buraco no meio do peito que é o lugar onde as saudades se instalaram, e assim que podem abrem a porta e deixam entrar frio. Quando este dia chegar vou poder abrir a gaveta sem medo dos olhares dos dias passados, do cheiro do jardim de mil flores, tomateiros e alfaces. Um dia acabo com isto das saudades e vingo-me no regresso à minha rua de toda a vida e à minha casa cheia de mim e de nós, que vou desatar todos, um por um, desde os dias da escola da dona rosinha até ao muro de pedra sobre o fio de água a que pomposamente chamávamos ribeiro. Um dia zango-me mesmo a sério e volto a casa para cheirar as paredes e dar mais um passo no chão gasto, olhar e ver sem medo que a maior parte de mim ainda ali está. Volto para somar sentires aos milhões que já senti.

Qualquer dia acabo com isto das saudades, mas um amigo disse-me para deixar estar, que é isso que nos faz gente. Será?





Maria Laranja

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