Viagem no tempo, de Inês Rocha



Amélia caminha devagar entre os corredores de roupas penduradas em cabides, mudos e coloridos. Falam de sol, esplanadas, e caminhadas lentas, embaladas por um vento morno. Para em frente a uma prateleira sozinha e contempla um chapéu de palha, tão simples, tão bonito, com uma fita fúcsia enrolada à volta da cor pálida e ensolarada. Olha em volta e pega nele devagar, quase respeitosamente...deixa-o pendurado na mão, quieto, a respirar em silêncio nas memórias de um verão distante, cor de sépia e cheiro a sal; corria descalça pela areia molhada, o vestido rosa a rodopiar em volta das suas pernas ansiosas, e a espuma que se desmanchava a seus pés descalços, enquanto corria atrás de um chapéu livre...Num ímpeto de saudade Amélia põe o chapéu na cabeça e olha-se ao espelho, encantada: emoldura-lhe o rosto suave e o cabelo, agora mais curto que nas suas lembranças. Olhando novamente em volta arruma-o delicadamente na prateleira.

Caminha de novo, vagarosamente, abstraída do som de fundo de uma música impessoal que se faz ouvir na loja quase vazia de gente. Para. Foi atraída por um tecido azul-turquesa. E o seu coração palpita como o de um passarinho perante uma gaiola aberta e a liberdade no horizonte. Imediatamente volta a ver um vestido longo, escorregando pelo seu corpo jovem e curvilíneo como uma carícia indecente no despertar da noite; de longe mais bonito que aquela saia ridiculamente curta que segura em frente a si. Mas a cor...a COR! Fá-la viajar até uma noite de Verão em que toda ela era vaidade azul-turquesa, exibindo braços brancos e uma cintura estreita que convidava ao abraço. A música torna-se pessoal nas suas lembranças e sente-se novamente a dançar, amparada por um corpo quente, latente. Não consegue parar de sorrir...e assim se depara consigo própria no espelho que lhe devolve uma imagem sonhadora e apaixonada. Vè um outro olhar, que não o seu, entre o espantado e o irónico. Atrapalhada, arruma a saia no seu lugar e escapa-se para a secção de calçado. Sente que olhos críticos a seguem. Inquieta, pensa que talvez seja melhor sair, para quê andar ali às voltas? A vida não sai do mesmo sítio... 

E é então que os vê! Uns sapatos brancos, delicados, de salto alto, exibicionistas no altar da sua prateleira. Não lhes toca. Fica parada, deliciada...vê os seus pés calçados com uns outros semelhantes...durante um dia inteiro, em que tudo era branco: o seu sorriso, o seu vestido, o seu coração...sapatos brancos que guiaram os seus passos desde um altar até uma cama feita de lençóis virgens. Nela foi deitada pelo homem que a roubara de si mesma para lhe dar muito mais em troca, numa vida inteira. Naquela noite, na sua noite, lembraram o primeiro passeio na praia, onde lhe voara um chapéu dos cabelos compridos, fugindo ao sabor de um vento que sabia a promessas...lembraram a dança cor azul-turquesa, ao som de uma declaração de amor...e, após as lembranças, Álvaro ajoelhou-se uma vez mais, mas para lhe tirar os sapatos brancos, devagar, como uma criança que desembrulha uma prenda tão desejada, sustendo a respiração em expectativa, desfolhando-a depois como um livro raro que contém um segredo...segurando a sua dor, e o seu prazer, entre as mãos protetoras, embalando-a noite dentro em conversas de estrelas e momentos por vir...


“A velha não está boa” - Amélia desperta. para a realidade com a voz em surdina que se faz ouvir. E os risinhos mal disfarçados. Leva a mão magra á cara: está molhada de saudades. Mas sente-se feliz. Dirige sem vergonha um sorriso de desculpas á empregada da loja e, enquanto sai, vagarosamente, apoiada na sua bengala de madeira feita por Álvaro numa tarde de domingo (“Não te prometi que ia sempre cuidar de ti?”), Amélia sabe que a veem como uma demente, que cobiça chapéus ridiculamente vistosos, saias ridiculamente curtas, sapatos ridiculamente altos. Mas agora, após as lembranças tão vivas de um tempo ridiculamente jovem, sente-se com força, rejuvenescida! A empregada segue-a com os olhos, e Amélia consegue sentir a sua pena, quase consegue ouvi-la pensar “Não quero ser velha”...mas ela ainda não sabe que existem coisas sem tempo, sem idade, resistentes à erosão do tempo na pele e na alma. Amélia tem agora vinte anos na vida das suas memórias, feitas de cores, cheiros, e momentos de eternidade.


1 comment:

quem sou eu? said...

Bonito...intenso...faz-me lembrar eu mesma quando me perco nos delírios e rio sozinha:)