No quarto aberto á escuridão
o tempo divide-se em chuva e em pele.
O teu corpo lento descansa sobre a manta pequena,
as tuas mãos correndo como um rio que transborda,
as tuas chagas de fogo reflectidas nas janelas.
O amor abandonado na cama de ferro num sono profundo de mentira.
Tu, elemento central deste quarto, perdido entre o jarro de água na mesa-de-cabeceira
e o gato cinzento que se espreguiça,
tu e todo este espaço gritando em uníssono.
A noite prolonga-se na cidade incendiada,
da mesma forma quente que o teu cheiro se prolonga em mim,
da mesma maneira inquieta que os teus cabelos adornam a almofada branca.
Quero a tua essência completa, o teu abraço perfeito,
a tua alma exposta, o teu toque mágico de manteiga derretida.
Preciso de te alimentar o ego, de te chamar hipócrita sem razões plausíveis,
de te reconstruir, sem medo, o coração de pântano.
Reconheço em ti o Verão que me penetra,
o vento que me fere,
a razão que me provoca.
Tudo em mim é agreste quando te perco na bruma da manhã
e nada te devolve ao meu regaço
e a este quarto eterno de névoa.
Rute Gonçalves
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