Quarto aberto à escuridão de Rute Gonçalves




Quarto aberto à escuridão



No quarto aberto á escuridão

o tempo divide-se em chuva e em pele.

O teu corpo lento descansa sobre a manta pequena,

as tuas mãos correndo como um rio que transborda,

as tuas chagas de fogo reflectidas nas janelas.

O amor abandonado na cama de ferro num sono profundo de mentira.

Tu, elemento central deste quarto, perdido entre o jarro de água na mesa-de-cabeceira

e o gato cinzento que se espreguiça,

tu e todo este espaço gritando em uníssono.

A noite prolonga-se na cidade incendiada,

da mesma forma quente que o teu cheiro se prolonga em mim,

da mesma maneira inquieta que os teus cabelos adornam a almofada branca.

Quero a tua essência completa, o teu abraço perfeito,

a tua alma exposta, o teu toque mágico de manteiga derretida.

Preciso de te alimentar o ego, de te chamar hipócrita sem razões plausíveis,

de te reconstruir, sem medo, o coração de pântano.

Reconheço em ti o Verão que me penetra,

o vento que me fere,

a razão que me provoca.

Tudo em mim é agreste quando te perco na bruma da manhã

e nada te devolve ao meu regaço

e a este quarto eterno de névoa.





Rute Gonçalves

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