Dante
e o arcanjo
Dentro da minha
boca a arma do crime. Caminho em direção à cela que ocupo no final deste longo
corredor transfigurado em túnel do tempo, por onde projeto os descaminhos, os
desvios tortos, toda a mediocridade de minha existência passageira, fracassada,
oposta àquela idealizada, desejada, e que não vivi. Há uma ausência de mim
mesmo onde nenhuma palavra humana chega, onde nada mais pode me alcançar. Estou
tão distante.
No momento
final não há sonhos, a cada passo à frente, a realidade vai se exibindo numa retrospectiva acelerada e caótica, os acontecimentos fora de ordem se sucedem como em um filme com trinta
e um bilhões, cento e quatro milhões de quadros da vida, um ano de 24 imagens por
segundo exibidas no fundo da retina, carregadas de sentidos bem definidos pelas
emoções que dilaceram a alma.
Desfila o
sofrimento constante pela busca estúpida e sôfrega do pão de cada dia, das
noites dormidas entre ratos, baratas e odores nauseabundos, da agonia por todas
as telas que não pintei e das matizadas que não me deixaram expor. O altruísmo
do amor por Lúcia, a frase concebida que levou a mulher mais bela da Rocinha a
cair sucumbida, nos braços daquele que se tornou o pai de seus filhos. Lú, lembrança
cálida que me faz sorrir. E chorar.
O mundo capital
me levou à casa da indignação. Da agonia. Da raiva. Do desespero. Veio a
decisão. Meu espírito se engravidou para gerar o homem Dante, aquele que
libertaria o arcanjo, Miguel, que me faria imergir e emergir na pintura, transbordante
de uma serenidade sem fim. Mas o beco, cruel, só possuía duas saídas: tráfico
ou assalto. Escolhi a mais perigosa e
digna dessa díade.
Senti o frêmito
de quando se parte pra guerra.
Senti o frêmito de quando se volta da guerra.
Senti o frêmito de quando tudo se encerra.
A confecção em gesso do cofre, um porquinho,
com a arma dentro. A mochila repleta de dinheiro. Catástrofe. O duelo perverso.
O vento da bala tangendo minha têmpora. Incontroverso, o impulso a jato voa na
superfície da minha consciência submissa. O horror do brilho funesto se apagando no olho do outro.
Dante assassino. A esperança do arcanjo se dissipando. A condenação. Arresto.
Ninguém me
responde
Ninguém me defende
Ninguém me entende.
Eu, Miguel, não
nasci para o que me tornei. Agora, nem importa de onde vim, só pra onde irei. Guiado
pela certeza do definitivo. O resto é uma história cheia de culpa que não sei
até onde sou responsável. Punitivo. Adentro minha cela e retiro da boca o
cadarço, a arma do crime que comprei do Rambo no terraço, no mais prazeroso de
todos os banhos de sol. É o efeito “ecstasy” da vida por um fio. Esplendoroso e
estranho.
Subo no beliche
de cima. Amarro o mais longe possível uma das pontas do cadarço de nylon no
ferro da minúscula janela gradeada, quase no teto, onde a pintura do meu autor-retrato,
dois perfis, serve de cortina decorativa. Testemunha da derrocada. Em
equilíbrio instável, em silêncio, Dante laça a outra ponta no alto do pescoço,
implacável, e sem prenúncio, impulsiona forte meu corpo pro fundo da morte.
- Fátima Rocha Perini
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